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     + TEXTOS EM BREVE! AGUARDEM!

 

                  HISTORINHA DOS BASTIDORES NÃO-TÉCNICOS DE UM TRABALHO:
                      Curiosidades que influenciaram o que se tornou o meu primeiro livro.
                         Cristina Montenegro  (Texto originalmente de 2006 revisto agora)

 


             

No tempo em que me perguntavam ‘o que eu ia ser quando crescesse’, eu dizia que queria ser arqueóloga e bailarina; descobri no ano do vestibular que ainda não tínhamos a Faculdade de Arqueologia aqui. O Balé foi proibido, pois meu pai (na mesma ocasião em que a minha Professora recomendou aos meus pais que eu fosse encaminhada para a Escola Maria Olenewa) estava muito ressentido quanto à vida artística, depois de anos perseguido pelo Estado Novo por suas atividades nela, rejeitado (EVIDENTEMENTE) pela ‘direita’, mas abandonado também pela ‘esquerda’, na medida em que se recusava a se filiar ao PC; ele preferia ser um humanista, sem partidarismos; tenho a quem ‘puxar’...

Desde que li Monteiro Lobato tinha a mais absoluta certeza que a Deusa Ártemis, “em pessoa”, me protegia; foi meu primeiro contato com os significados eternos da Mitologia, e a ‘empatia’ com ela foi imediata.

DO QUÊ ela me protegia, não tinha muita noção, inclusive porque nos Contos de Fadas eu tinha (já!) grande simpatia pelas bruxas, e achava cinderelas meninas muito mimadas, coisa que eu não era, nem em casa, nem no colégio (de freiras!).

Fui fazer uma espécie de ‘arqueologia-para-dentro’- a psicologia clínica apoiada especialmente pela psicanálise – e acrescentei o corpo ao contexto clínico para que o balé e os esportes se fizessem presentes nos meus afazeres.

 

Como só tivemos televisão a partir dos meus cinco anos, ouvi muito rádio.
No Rádio, achava Marlene o máximo, e adorava o suspense misterioso de ‘O Anjo’.
Mas foi com Hebe, na TV dos anos 50, que me dei conta que o simples fato de nascer mulher ou homem trazia grandes minhocas à cabeça de todos, pois criar um programa que dizia que “O mundo é das mulheres” parecia ter –já  na época - grande relevância.

 

Muitos outros livros além-Lobato me levaram à loucura, no melhor dos sentidos (será que há outro?...).

Entre as mulherzinhas de Louise May Alcott que me fascinavam, jamais decidia se preferia me identificar com a coquete, a estudiosa, a maternal, ou com a dona-de-casa perfeita; todas as opções eram “roupas” literalmente “justas”. Escolhi com relutância a personagem Jo, e só quem leu ou viu os filmes vai entender o que estou dizendo... Leiam! Ainda hoje vão gostar!​

 

Demorou um pouco mais para conhecer Doris Day e Marilyn no cinema; estava mais velha, e li – já - Simone de Beuvoir; aí tudo ficou ainda mais confuso, e “decidi que não decidiria por  algum modelo próprio”: continuaria adorando todas elas, as radiofônicas, as televisivas, as livrescas, as cinematográficas, as da vida da Vida, mas ainda por cima teria filhos, pois na época acreditava  que no fundinho elas também teriam a-ma-do tê-los; eu felizmente tive, pois a-mei...

 

Na época em que casei comigo mesma, e fui morar sozinha (entre os dezoito/dezenove anos!), isso ainda era tão exótico, que ninguém - familiar ou amigo - se lembrou de me dar um “chá de panelas”; minha avançada irmã Dayse (que – por exemplo - me ‘apresentou’ o som de João Gilberto) me deu copos (ainda tenho quatro deles), e minha irmã Mitzi me ajudou mais tarde com os enxovais dos filhos. Eu as chamava e chamo de ‘irmães’.
Ótimo!
A primeira compra para a casa foram estantes, afinal! Panelas, só para sopa de letrinhas e fazer ovos cozidos.
Entendi ali que muita gente, já NAQUELA ÉPOCA me achava ‘ESQUISITA’.

 

Da adolescência à juventude (ou pela vida afora?) levei “foras” horrorosos de muitos rapazes por quem eu era apaixonadíssima, e que até pareciam interessados em mim. Para casar com mulher sem patrimônio ((bens?) e ainda por cima estudiosa, NA ÉPOCA, nenhum deles teve peito, pois essa foi a educação que eles receberam. Há um ano e pouco atrás finalmente li Proust, e ‘entendi tudo’; leiam-no! Talvez muita coisa fique clara para vocês também!...

 

Criar os filhos (imagine se eu ia ficar sem eles só por opção masculina, rituais sociais e/ou burocracias!) estudando, trabalhando muito por gosto e sobrevivência, foi um suadouro.

Por sorte, os pais dos meus dois meninos foram muito legais dentro da possibilidade deles, e não tive ‘órfãos-de-pai-vivo’ em casa, o que já estava de bom tamanho; e tome “olhares tortos” dos mais conservadores ao redor que 'torciam' pelo meu fracasso nessa ousada empreitada!

 

Por mera orientação espontaneamente implantada, da ordem do inconsciente (a famosa ”dupla caipira Minha Alma-Meu Corpinho”), jamais me aventurei nos braços de alguma amiga que preferisse as mulheres; aí, tome “olhares tortos” dos moderninhos DA ÉPOCA que alardeavam ‘que era necessário experimentar tudo’, e esqueciam – tal qual os conservadores o faziam – que orientação é singular, pessoal e intransferível!

 

“Defeitos” DE ÉPOCA (ou humanos?) que prejudicaram homens e mulheres, em quaisquer épocas.

 

Participação em Movimentos feministas? Muita!

Lamentavelmente os Partidos Políticos os atropelaram/engoliram, e a evolução que (inevitavelmente) tiveram apesar disso a partir dos anos 90, já acompanhei de longe, apoiando-os antes em minhas iniciativas profissionais que em “fóruns”. Quanto a Política Partidária nunca me encantou; sempre considerei as questões humanas prioritárias, e as considerava muito grandes para caber dentro dos “jogos” ainda inalienáveis do ‘partidarismo careta' vigente.
 

O triunfo do trabalho autônomo não me deixou sentir a frustração de não progredir profissional-financeiramente tanto quanto talvez merecesse por ter nascido mulher, mas vi inúmeras amigas serem injustiçadas, e mesmo algumas delas aterrorizadas em seus ambientes de trabalho apenas por isso.

 

Tive, lamentavelmente, conhecidas violentadas, algumas no cárcere político.

 

Tive sorte; a única violência da qual minha feminidade não conseguiu escapar, foi a passageira desqualificação dos sintomas/consequências de minha menopausa, pelo contingente masculino ao redor; os rapazes ainda não são preparados para as moças que menstruam, o que dirá para isso: quando param de.

Outros episódios de violência, só os referentes aos direitos humanos em geral. Isso nos baliza (mulheres, homens, LGBTTs, assexuados, etc), infelizmente. 

 

Nada disso, no amadurecimento, me levou a direcionar minhas questões pessoais e teóricas para a preocupação de que ‘MULHERES SOFREM ABUSOS DOS HOMENS’ (como se fossem particularmente ‘vítimas’).

De seqüela HISTÓRICA ninguém está livre, afinal; mas ficar parado no equívoco do lamento nunca levou alguém a alguma coisa de fato nova.Não fiquei.

 

Tive um pai edipianamente “do-bem”, e a tendência humanista vem daí.
Os livros, a cultura, rádio-TV-cinema-capacitação para o senso crítico, tudo foi presente dele.
Como costuma acontecer, minha mãe me apresentou à Natureza; mar, mato, plantas, perfumes, lagoa, peixinhos, montanha, esportes, corpo...

 

Meus amores não me amaram tanto quanto eu esperava (e por acaso eles tinham a obrigação de se apaixonar por mim?), mas noventa por cento deles é de “amigos-até-hoje”, o que tem sido muito bom. A amizade plausível é um triunfo amoroso e tanto! Como li ontem a Livia Garcia Rosa escrever, "Não espere o amor chegar; ame o próximo".

 

Meus filhos já são homens de uma nova safra, e as meninas que se relacionam com eles (também já dotadas de novas informações) parecem bastante satisfeitas (essa esperta geração aprendeu rápido, e com menos dores, que ficar amigo é um “grande lance”).

 

Enquanto muitas amigas carregam suas vidas qual um fardo pesado e fedorento, parecendo cair no que chamei de ‘equívoco do lamento’, eventualmente disfarçado por ataques ao universo masculino que - supostamente – deveriam parecer “engraçados”, eu escolhi trabalhar - como boa filha da curadora Deusa Ártemis, e prima da Deusa babá de heróis Athena - COM os homens.

Lembro que – em primeiro lugar – planetariamente são meus “irmãos” (como o Deus Apolo era de Ártemis, e os heróis se sentiam ser de Athena).

Não tenho coisa alguma para “ensinar” a eles sobre suas masculinidades.
Mas gosto de ouvir, e adoro COMPARTILHAR pensamentos sobre eles.

 

Exijo (não peço, não rogo, não imploro, não rastejo) no mundo público, solitária ou coletivamente, o que julgo justo no que diga respeito à Mulher; mesmo que sejam questões que não estejam diretamente me tocando.

Tocar a espécie humana é sintonia suficiente para que eu exija o questionamento de qualquer coisa que fira, lese ou mate outro ser humano. Logo, brigaria, aí também, por abusos aos homens,por exemplo.

 

Na esfera íntima, tímida e assanhada na mesma medida, acolho e cubro de beijos quando desejo; quer ficar, fica; não quer, vou estudar e trabalhar, vou ouvir boa música e ler boa poesia; vou conversar com os amigos; estes, sempre de etnia, classe social e gênero os mais diversos. Sempre muito ocupada, há pouco espaço para o tal do tédio.

 

Cobro, fraternalmente, dos homens, sempre que posso, profissionalmente ou não, que reflitam sobre eles mesmos, e, se possível, se organizem para fazer isso com autonomia; autonomia é independer de convocação ou provocação institucional. Quando mulheres e LGBTTs começaram a refletir, a se reunir, e a se organizar ao redor de suas questões não precisaram de 'estímulo' governamental, de Ong, ou da Academia! Foi um desejo autônomo que se manifestou e ganhou corpo.

 

 Mulheres sofrem abusos? Claro que sim!  AINDA?  Alôôu! : a humanidade é lenta!
A afegã Malala VIVE, felizmente; a que preço!...

Mas, se este abuso (como um fenômeno humano) “está posto”, mão à obra!Até lá, um local tão comprometido pelo patriarcalismo patrimonialista, sobrevive a ONG RAWA, graças à autônoma organização das mulheres (seguida pela turma LGBTTs)

Vamos voltar a tomar providências, e agora com ainda maior autonomia, sem permitir que os interesses partidários suguem vampirescamente essas questões que são tão vastas.

Essas questões que fazem parte, simultaneamente, do mundo íntimo (nossa cama, nossa mesa, nossa casa) e do mundo público (nossa família, nosso trabalho, nossas escolas, nossa cidade, nossas reuniões culturais, nosso país, nosso planeta, etc.).

 

Vamos apenas lembrar os homens que estão livres para fazer uma reflexão sobre “sua raiz” (o que é ser um homem?), e vamos retomar a posse da nossa.

 

Mulheres não têm mais nada prá se questionar?...

A quantas anda a (re)definição de nossa feminidade?

Até onde as cobranças que temos despejado sobre os homens continuam pertinentes, e onde já começa a se equivocar de novo?
Onde as cobranças poderiam – sim – se dirigir ao Caldo Cultural patriarcalista-Patrimonialista (que lambuza homens, mulheres, e até gente da turma LGBTTs)?...

Quando eles tentam novas iniciativas, nós permitimos que eles o “treinem” experimentando o ensaio e o erro?

Quantas mães permitem ou incentivam que seus filhos homens brinquem de boneca e aprendam uma das parcelas da paternidade? Nem sempre a ‘proibição’ e o desestímulo vêm dos pais-homens!

Os homens são tão promíscuos assim, ou nós é que reprimimos uma boa parte de nossa própria possibilidade de experimentar relacionamentos libertariamente múltiplos?

O que esperamos dos homens é REALMENTE um comportamento mais respeitoso e menos abusivo, ou tememos a diferença da masculinidade e (por isso) queremos que eles se comportem com uma feminidade que só é dada às mulheres, (é claro!)?

Estamos crescendo profissional e financeiramente; mas... e a nossa empatia e o nosso humor? Estão igualmente mais apurado? A vida e o viver está valendo a pena?

Sabemos ouvir/acolher o Outro e  fazer piadas?

Algumas de nós têm ou não têm imitado a volúpia de poder (e de ter) que tanto tempo criticamos no contingente masculino?

Temos ouvido música de qualidade? Qual o espaço da Arte (e da discussão dela) no nosso cotidiano?

Quando nos deparamos com um texto que parece difícil temos curiosidade e paciência de ir pesquisar porque ele foi escrito?

A competição feminina (acompanhada sempre de perto por uma ferina maledicência de mulheres sobre outras mulheres) diminuiu, após as discussões ditas feministas?

 

O Homem tem volúpia por coisas sempre novas (“...cupiditas rerum novarum...”),dizem algumas mulheres, quase rosnando.

E daí? Por mim, contanto que o 'novarum' deles inclua a eles mesmos estaremos todos 'no lucro'!

 

Algumas mulheres também andam explorando essa possibilidade nos últimos anos; a Mulher passou séculos reclamando disso, e acabou descobrindo que isso pode ter sua hora e seu valor...’Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é’; isso só é ‘bonitinho’ na letra da música?

Como diz a ópera, “..´.La dona é móbile´,  como uma pluma ao vento...”.

Por que - se têm tamanha (e inegável) capacidade de mudar e se transformar – algumas mulheres estão demorando tanto a mudar ainda mais, abandonando o equívoco do lamento, e acreditando que o homem também mudará, mesmo que não o faça na velocidade em que ela o tenta “agendar para ele” todos os dias?...
Liberdade e autonomia nos olhos do Outro é refresco?...
ESSA última pergunta vale para todos os Gêneros, claaaaaro...    

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IDENTIFICANDO O DANO PSICOLÓGICO POR EROTIZAÇÃO PRECOCE

(*)Baseado na primeira versão escrita em 1998, para o número 0 do Jornal do Movimento Contra a ErotizaçãoPrecoce/Angels, e revista agora).

Por mais “circunspecto” que seja o tema que - por algum motivo - eu precise estudar/abordar, não deixo de refletir sobre ele, de investigá-lo, de pesquisá-lo também através do instrumento HUMOR.

Esse caminho - nada ortodoxo - invariavelmente me reserva surpresas, excelentes informações, ou subversivas descobertas das quais não poderia abrir mão.

Assim, enquanto preparava o texto para uma palestra sobre ética (para um grupo de estudos que se reuniria no Restaurante Mange (Shopping da Gávea /RJ), descubro e reservo, perto da pilha de livros, uma “tira” de humor do poético cartunista Laerte, publicada na Folha de São Paulo.

Nela, o Diabo procura Deus, pedindo ajuda para colar a tampa de seu relógio, que teria se soltado; Deus, que aparece lendo Filosofia, o atende e pega logo a cola, mas os dois (trapalhões?...) acabam colados um ao outro...

O Diabo comenta: -“Ih! O tempo parou!...”

Deus acrescenta: -“Ora! E eu lendo metafísica!...”

Também aqui seria impossível pensar no assunto excluindo as questões éticas, “diabos e deuses” colados/costurados, “tempos parados”, eternos retornos, e filosofias, às vezes imersas em certas per-versões pós-modernas, isto é, freqüentemente restritas à retórica...mas “não vividas”. Discursos e Ações per-vertidamente divorciados.
Quando dualidades estruturais (como essas: DISCURSO x AÇÃO) estão divorciadas, se distanciam perigosamente do elemento que cuidaria do diálogo plausível entre elas: a RESPONSABILIDADE
.

Creio que não precisamos lembrar que esse movimento - (Movimento Contra a Erotização Precoce) - não traria de volta a criança de outros e passados tempos, a quem os assuntos sexuais e/ou a SEXUALIDADE em si seriam negados:
 -“Crianças são tão inocentes, que nem têm isso, nem sentem essas coisas!”
Ou sumariamente proibidos:
 -“Crianças são inocentes; não devem, não podem aprender essas coisas!”.
A intenção dos responsáveis pelo Movimento não é essa.

Pelo contrário, reivindica o DIREITO DA CRIANÇA a uma orientação adequada a cada etapa evolutiva de seu (singular, pessoal e intransferível) desenvolvimento, que tenha ESCUTA e RESPEITE O OLHAR DELA SOBRE A SEXUALIDADE, CONDIZENTE À SUA FAIXA ETÁRIA. Tudo CONDICIONADO À SUA ESPONTÂNEA SOLICITAÇÃO, claro.

Claro que há filigranas de definição de “erotização”, ou mesmo de “precoce”, que podem vir a “evoluir” ou a se transformar (talvez!) com o tempo (hipótese levantada, por exemplo, pela psicanalista Elizabeth Roudinescu). Mesmo assim, poucas dúvidas pesariam sobre a opção de preferir o Olhar da Criança, pedido por ela, apropriado aos limites de seu corpo, de seu desenvolvimento afetivo e intelectual, a quaisquer imposições/invasões violentadoras, fruto do Olhar de quaisquer adultos.

A psicanalista Susan Isaacs um dia perguntou:

...“O quê pode ser mais nocivo para a bondade e a felicidade que a circunstância de ser induzido a pensar que a própria existência teve suas raízes em algum mistério vergonhoso?”... (Tradução minha; “Anos de Infância”, Editiones Hormé; pág. 129).

“Vergonhoso”, pode ser inclusive: - tanto o que seja proibido e transformado em tabu, - quanto o que seja constrangedoramente (ou violentamente) imposto, invasivamente.

Exatamente por não ser vergonhoso, e sim sublime como a própria Vida, (porém tão complexo quanto à própria Vida), o processo de inserção no universo da sexualidade ou erotização merece cuidados.

Os mesmos cuidados que merece o processo de inserção no universo genérico da autonomia, no universo sagrado da singularidade.

Susan Isaacs, neste mesmo livro, lembra que as inevitáveis primeiras perguntas sobre a sexualidade, atravessam a sexualidade, para perguntar - na verdade - sobre a existência.

São perguntas existenciais, que evidenciam - em primeiro lugar - a inserção de mais um ser vivo na metafísica; aquele pequeno indivíduo quer, na verdade, exibir sua recén-adquirida “carteirinha de ser – humano”...

Segundo Susan Isaacs, é como se a criança dissesse:

“-Ei! Preciso aprender sobre essas coisas misteriosas que ando intuindo, porque já percebi que não sou uma pedra, não sou uma florzinha, nem um animal qualquer; quero que vocês saibam que percebi que somos um grupo, que eu pertenço a este grupo, e que isso serve para alguma coisa!...”.

É o recurso que a criança tem de entrar para o “clube” dos seres que se preocupam (e como seria possível estar vivo e não se preocupar?...) com as mais estimulantes perguntas do universo:

“De onde viemos? Para quê estamos aqui? Para onde vamos? Por que o Ente e não antes o Nada?...”

O SENTIDO? Onde está o SENTIDO?”, é outra (nobre?) pergunta freqüente na produção poética (inclusive a poética e humorística) humana.

Sem direito (ao menos!) à autonomia do perguntar: -“Onde está o sentido/significado de existir?”, um ser (que mereça o a categoria de humano) talvez não suportasse viver!

Não é sequer necessário ser alfabetizado para sonhar.

Mas ser autônomo e singular é fundamental para sonhar, para SER.

LOGO o processo dessa construção não pode ser nem  impedido, nem “atropelado”, nem INVADIDO.

O sonho, comum a qualquer ser humano, “prova” isso.
É no sonho que a sofisticação do POÉTICO se torna plausível.
Prova que a “carteirinha” que podemos dizer que a criança reivindica ao perguntar: “como ele nasceu?” ou “de onde vêm os bebês?” existe: a singular subjetividade.
Existe, e deveria ter um valor.

Valor, e não preço.

Assim: - fazer de conta que sexo não existe, - ou falar de sexo como se fosse apenas uma asséptica experiência científica de
laboratório, - ou demonstrar (mesmo que com um único músculo facial) que aquilo é alguma coisa perigosa ou maldosa, são atitudes que vão roubar tanto muitos  tijolos preciosos da construção das noções de valores existenciais, de valores p(r)ó-éticos da criança, noções de generosidade, quanto preciosos tijolos da construção da sua sexualidade...

Além disso, violentar a espontaneidade, impondo informações sobre a sexualidade, impô-las com o olhar malicioso do adulto, se equipara à mais reles violência sexual, onde um ser exerce o seu (suposto) poder, vertical e arbitrariamente, sobre o Outro (quer falemos especificamente de episódios de pedofilia ou não).

Se o Outro é de fato uma criança, eqüivale especialmente a um assassinato, já que a singularidade original que ali se desenvolveria antes do crime não mais se manifestará: está morta, mesmo dentro de um corpo que poderá, talvez, continuar vivo. Não é hora de perdermos tempo com eufemismos.

A espontânea construção da sexualidade e ou da singularidade do Outro, É O OUTRO, faz parte dele, do corpo existencial dele.

No primeiro capítulo de “Princípio Vida”, Hans Jonas comenta, com outra intenção teórica, mas ainda oportunamente para esta nossa reflexão:
...”No corpo está amarrado o nó do Ser, que o dualismo rompe, mas não desata”...(pág. 34).

Invadi-la com palavras, imagens, ou olhares maliciosos devia ser considerado tão CRIMINOSO quanto invadir com seu corpo adulto ego-centrado (egoísta?) tiranicamente autoritário o corpo até então livre do Outro.
Possibilidades de patologias individuais é tema que merece debate específico; lembremos apenas que são episódios sistematicamente associados à identificação de abuso na própria infância do novo abusador, a se perpetuar.

Se o processo de erotização de uma criança é invadido pela intervenção maliciosa de (um) adulto(s), e o sentido existencial de seus próprios questionamentos é ignorado, a sexualidade da criança, (perdendo assim seu SENTIDO), é “coisificada”.

A sexualidade dessa criança é desvinculada do ato de existir...

A sexualidade da criança deixa de significar uma possibilidade de fruição prezeirosa e compartilhável da existência, da Vida.

Se a sexualidade que a trouxe para a vida (ou para o existir) é “UMA COISA”, ela (a criança) também é “APENAS UMA COISA”...

Não é mais ALGUÉM; é ALGO.

Aquele ser humano, cuja existência plena iria desenvolver plausibilidades de se expressar, inclusive quanto a sua sexualidade, foi assassinado.

Indivíduos têm VALOR; coisas têm PREÇO.

Vivemos tentando fazer de conta, inclusive, que não enxergamos o gigantesco contingente de crianças cuja sexualidade/existência está sexualmente “vendida” nas ruas, ao nosso redor; ou o assunto deveria se restringir às crianças de classe média que têm “lar”, “família”, e “televisão”?...

SOMOS TODOS RESPONSÁVEIS; NOSSAS MÃOS ESTÃO SUJAS...

Coletividades estão igualmente sujeitas a patologias, o que também merece debate específico em outro momento.

Leandro Konder lembrou, um dia, numa crônica de jornal, que: ”HOJE EM DIA QUASE TODO MUNDO SABE O PREÇO DE QUASE TUDO, MAS QUASE NINGUÉM SABE O VALOR DE QUASE NADA”...

Por que será, heim?

A QUEM interessaria essa banal “COISIFICAÇÃO GENERALIZADA?”...

Textos ainda com “GRANDE IBOPE” sobre ética, utilizados (subversivamente?) em pleno 2001 (até quando?...), são os de Baruch Spinoza (1632 / 1677), onde consta, por exemplo, que “a alma é o corpo visto através do pensamento”, ou que “a alma responde a tudo o que acontece no corpo, assim como o corpo há de sentir o efeito das paixões construtivas ou destrutivas que prosperam na alma”.

Não basta ao indivíduo ter CORPO / AFETOS / INTELECTO.

Mesmo que “TENHA” os três, ele só “EXISTE” se estes três elementos conseguirem EXERCITAR A BUSCA DA INTERAÇÃO EQUILÍBRADA ENTRE ELES.

Só ASSIM o indivíduo ganha a chance plausível de MATAR A FOME DO SENTIDO, do significado de existir...

Nó funcional que dualidades não rompem...como lembrava Hans Jonas.

Lá pelo século XVIII a infância “FOI INVENTADA” (assim como a adolescência, lá pelo século XIX).

Até então não nos preocupávamos com o que caracterizava esses períodos evolutivos dos indivíduos, ou com os cuidados que os nossos descendentes mereciam em seu desenvolvimento.

NÃO; infelizmente não foram “estudiosos bonzinhos” que decretaram estas “INVENÇÕES”, e deflagraram os estudos (que ainda hoje evoluem) sobre nossas crianças e nossos adolescentes.

Na verdade foram movimentos da evolução do capitalismo, nesses momentos históricos, que precisaram de NOVOS PERFIS DE CONSUMIDORES...

Foi graças a essa demanda de Mercado que “inventamos” a infância e a adolescência...

Recente (e felizmente), o consumidor idoso também foi “DESCOBERTO”, e – assim - “INVENTADA” a “Terceira idade”.

Que categoria de consumidor trará a próxima “INVENÇÃO MERCADOLÓGICA” - e aí sim - NOVAS consequências pedagógico-comportamentais-jurídicas?... Aguardemos!

SIM; diabos” e “deuses” nasceram colados/costurados/misturados...

As “invenções” vieram do trâmite mercadológico.
Mas - uma vez inventadas - foram DE FATO desenvolvidas por estudiosos, que viram SENTIDO em investigar e pesquisar.
sim - de fato – demos um passo à frente...

Escrevo (*) numa semana sincronicamente curiosa, ao longo da qual a imprensa alardeou a “nova programação infantil das Tevês”, assinalando “o quão educativas elas decidiram realmente se tornar a partir de 2001”...

NÃO; não me parece que “executivos bonzinhos” decretaram, arrependidos, "o banimento das danças- das- garrafas” infanto- juvenis tão mal-faladas (e tão pouco refletidas a sério) de nossas telas.

Na verdade, inúmeros novos produtos educativos, que precisam de consumidores, foram criados. Por exemplo, na animadíssima e ágil, mas ainda incipiente WEB; inúmeros produtos (jogos, livros, discos, etc.) educativos estão mofando no comércio em função da eterna crise econômica (e já energética), ao mesmo tempo que as escolas particulares (devido às mesmas crises), sofrem com a evasão de seus consumidores... PERDÃO!... Alunos...

É a demanda do mercado sobre o consumidor em potencial: agora é a “criança circunspecta e futurista supostamente pronta a aprender com a tecnologia - (e a pagar por isso)” que exige a modificação do perfil de nossa programação infanto–juvenil na (ainda) poderosa mídia (que só sobrevive – aliás – a partir de seu diálogo com a igualmente poderosa voz dos consumidores).

SIM; provavelmente nossos descendentes vão “lucrar” em aspectos não – mercadológicos, e estudiosos DE FATO terão acesso à possibilidade de interferir, e DE FATO desenvolverão afirmativamente tudo isso; DE FATO criarão um processo de transformação na informação direcionada a nossas crianças e jovens.

SIM; o “milk-shake de diabos e deuses” é a “metafísica mais realista” que o adulto tende a desvendar, com o “tempo quebrado” - ou não - que lhe restar.

 

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           OS TEXTOS DE CADA VIDA; A VIDA, UM TEXTO

Redação revista e comentada da palestra desenvolvida para a UEMANET em fevereiro de 2014.Evento ‘MORA NA FILOSOFIA’ em sua 3ª.edição – São Luis/MA.Somos acostumados a usar com frequência o ditado popular que diz:- “O brinquedo da criança é o trabalho dela; já o trabalho é o brinquedo do adulto”.Posso estar enganada, mas me parece que o usamos antes ‘da-boca-para-fora’, retoricamente, que refletindo DE FATO sobre os significados de tudo isso.Vamos então abrir a palestra - com o objetivo de focar ainda melhor as reflexões que serão aqui lançadas paulatinamente – com uma pausa.Uma pausa para fecharmos os olhos, e relembrarmos por um minuto alguma brincadeira da infância que – de fato – tenha nos entretido, marcando-nos com alegria suficente para deixá-la até hoje na memória.(PAUSA).Pensando em foco, embora sem rigidez, lembro que na nossa Oficina (destinada a redescobrir a ‘Capacidade de Espanto’ na leitura de textos, especialmente os teatrais) a indispensável apresentação inicial de todos os participantes se deu pelo desenho do ‘perfil de leitor’da turma.Para isso, fizemos a descrição dos livros marcantes na infância, na adolescência, e na vida atual de cada um (já que as duas primeiras edições do Evento falavam de Filosofia e Infância, e Filosofia e Adolescência, enquanto essa diz respeito à Filosofia e o Adulto).Até o final dessa palestra creio que ficará mais claro que essa proposta de caminho para a reflexão vai além do mero ‘vício profissional’ de uma psicoterapeuta.Não tenho a menor pretensão de “dar respostas” às questões que serão levantadas; prefiro o incômodo lugar de mera “provocadora de reflexões”...Cada brincadeira da infância (assim como cada aventura da adolescência) poderia se tornar um texto publicável; bastaria que fosse redigido (de preferência com um leve toque de Arte) pelo ‘brincante/aventureiro’, e posteriormente aceito por alguma Editora. Mas se isso não aconteceu, não ‘rouba’ do relato implícito sua potencialidade textual.Brincar é coisa séria: se conseguiu na pausa lembrar de sua brincadeira, lembrou também que naquele momento aquele brinquedo era uma coisa séria e/ou profunda para você, por mais que fosse simultaneamente divertida.Essa coisa séria tem uma complexa e profunda função no processo que nos constroi e humaniza. O brincar serve como uma espécie de ‘RITUAL ELABORATIVO’ para a construção da nossa relação com nosso ‘si mesmo’, com o Outro e com o Mundo.Quando chegamos à vida da Vida, somos seres ainda mais precários do que somos agora e continuaremos a ser ao longo de nossas existências.Nossas interioridades estão particularmente desorganizadas, não temos como nominar nada, não temos sequer como pensar usando ‘Sujeito-Verbo-Predicado’ como já o conseguimos fazer agora; somos antes um vulcão em erupção de surpresas, sustos, pavores, e milkshake de desejos ainda sem nome lançados ao redor...Tudo é novo (e particularmente assustador) , tudo está em ebulição/construção naquele momento:- O Tempo/Ritmo (não temos sequer as primeiras noções de noções de ‘Início/Duração/Fim’, e no entanto ele está lá);- O Espaço (não temos sequer as primeiras noções de ‘Dentro/Movimento/Fora’, e no entanto ele está lá);- A larga e complexa ‘paleta de cores’ que percorre o caminho que vai do ‘Bem’ ao ‘Mal’ (se revelará lenta e gradualmente, o que já é deflagrado ali);- A larga e complexa ‘paleta de cores’ que percorre o caminho que vai do ‘Belo’ ao ‘Feio’, (se revelará lenta e gradualmente, o que já é deflagrado ali), etc.Apesar dessa desorganização já existe dentro de nós uma centelha única que um dia nominaremos “EU”, ou “MEU DESEJO”.Thomas Hardy, por exemplo, disse que “O Tempo muda tudo, menos uma coisa dentro de nós que está sempre surpresa com a mudança”...Como psicoterapeuta costumo dizer que a vida e o viver são uma tessitura; tessitura que inclui a escolha de uma estilística existencial: Ética (e etiqueta) e Estética (e estilística) são inscritas dentro de nós simultaneamente.A tessitura não tem fim; enquanto seres vivos somos seres em movimento.Se trabalhamos sobre nós mesmos, podemos nos manter em movimento de expansão; o único movimento de encolhimento compulsório é o final, que leva à paralização do percurso (ao menos do corpo, do intelecto e dos afetos dessa experiência que tragicamente sabemos de antemão ser transitória)...Numa conversa informal que tive com uma produtora cultural, ela me informou que, em hebraico, há apenas um vocábulo para designar “Vontade” e “Sabor”.Lembro que em alemão apenas uma palavra designa “Dívida” e “Culpa”.Lembro ainda que também “Brincar” e “Representar” são designados por um único vocábulo em ingles, frances, alemão...Vamos guardar também esses dados, para que igualmente alimentem as reflexões que quero deixar aqui.Nascer é ser lançado num mar de DUALIDADES: Viver e Morrer, Natureza e Cultura, Discurso e Prática, Amar e Odiar, etc.O impacto de nos depararmos com dualidades nos acompanha por toda a vida.Como vimos na Oficina, a proposta de Hannah Arendt para a construção da possibilidade de um reequilíbrio mínimo diante da inevitabilidade desse interminável impacto, para que toleremos a sensação de ‘estarmos divididos’ a cada passo entre as dualidades, é colocar RESPONSABILIDADE como ‘recheio do sanduiche’ de toda dualidade que nos assombre.Acrescento que a nomenclatura ‘diabo’ começa por DI, isto é por DOIS, indicando DIvisão (o que torna mais compreensíveis expressões populares como por exemplo “estar com o diabo no corpo”, que fala de alguém assolado por alguma dualidade, e do quanto essa sensação é desagradável, ou até perigosa para nossa sanidade mental/emocional)...Aliás a farmacologia (alopática ou homeopática) conseguiu inventar medicamentos para amenizar a ansiedade.Já para a ANGÚSTIA isso não é possível: angústia é “estar dividido entre isso ou aquilo”; para isso, o único remédio é a ESCOLHA...Quando usamos a RESPONSABILIDADE recomendada po Hannah Arendt costumamos fazer melhores e mais ágeis escolhas...Quando falamos de MODERNIDADE e PÓS-MODERNIDADE, do ponto de vista do nosso primeiro encontro com as inevitáveis e terríveis angústias do início da vida (onde elas parecem ainda mais perigosas por nossa precariedade, e quando de fato temos menos recursos para lidar com elas), dois fenômenos costumam aparecer associados a elas, e eles têm frequentado os debates humanos contemporâneos insistentemente:Na MODERNIDADE:É como se o quadro da MELANCOLIA ‘imperasse’.É como se predominassem pais omissos, ausentes, displicentes, negligentes.Digo “como se”, pois para um bebê o que acontece DE FATO é secundário; a fantasia que ele faz em sua precariedade sobre o que acontece é mais importante, e é – infelizmente – o que vai ficar impresso na memória (independentemente do que se passou na vida ‘real’).Mas quem sabe o comportamente psicosocial da época tenha ‘ajudado’ um pouquinho essa fantasia de ser negligenciado a se fundamentar?A compreensão do que compreendemos hoje como ‘infância’ e ‘adolescência’ apenas se desenhava, afinal...O fato é que a Melancolia é com facilidade associada à Modernidade, e – curiosamente – “os passantes” da poesia de Baudelaire (e os comentários de Walter Benjamim sobre estes poéticos “passantes” baudelairianos e seu tempo) parecem confirmá-lo.O melancólico parece olhar para o Mundo e dizer: “Já que ninguém olha para mim, eu também não vou olhar para nada; já que ninguém me dá a atenção que eu esperava, eu não vou dar atenção a ninguém; já que tudo passa e vai embora, eu vou me limitar a ficar aqui apenas olhando os que passam, deixando-os ir embora sem estabelecer vínculos significativos com eles”... Na PÓS-MODERNIDADE:É como se o quadro da DEPRESSÃO ‘imperasse’.É como se predominassem pais invasivos, uma Educação invasiva (com seu furor de discursos politicamente corretos, por exemplo), um mundo midiaticamente invasivo. Repito a questão do uso do “como se” que pontuei acima: para um bebê o que acontece DE FATO é secundário; a fantasia que ele faz em sua precariedade sobre o que acontece é mais importante, e é – infelizmente – o que vai ficar impresso na memória (independentemente do que se passou na vida ‘real’).Mas o teor invasivo de nossos tempos parece real, e parece andar ‘colaborando’ para que a fantasia de ser privado de exercício de autonomia, e da descoberta da própria singularidade, a partir da invasão permanente das interioridades desde o início da vida dos que vão chegando à Vida, alimenta substancialmente a construção dessa fantasia de impotência.O fato é que a Depressão é com facilidade associada à Pós-Modernidade, e lamentavelmente O VAZIO cantado em prosa, verso, e redes sociais parecem confirmá-lo.O depressivo parece olhar para o Mundo e dizer: “Já que todos pensam/sentem/fazem tudo por mim antes que eu possa fazê-lo conforme meu próprio desejo (que mal tenho a oportunidade de desvendar), eu devo ser uma casca inutilmente vazia mesmo; a minha existência (meu futuro eu, meu desejo) não faz(em) sentido algum; quem sabe não exista ou não mereça existir mesmo; vou tentar encher essa casca com a primeira coisa que aparecer, ou – quem sabe – tentar parecer um robô teleguiado, pois é o que parece que esperam de mim”.Não é por acaso que os históricos de obesidade, de alcoolismo, de drogadicções lícitas e ilícitas, de sexo compulsivo, de consumo desenfreado, etc. se acumulam, como se – para muitos – fosse mesmo necessário “botar coisas para dentro”, robótica e obedientemente ao comando de supostas regras.Botar quaisquer coisas para dentro da suposta mera ‘casca’: coisas que aparentem substituir suas interioridades, não percebidas a partir da ausência do exercício de construí-las e exercê-las singular e autonomamente.O sociólogo Robert Castel chega a identificar grande incidência de um fenômeno extremo, que ele chama de “INDIVIDUALISMO NEGATIVO”, que seria a incidência de comportamentos aparentemente individualistas, em sujeitos na verdade incapazes de intralocução, incapazes de ‘conversarem consigo mesmos’, já que olham para dentro e não vêem um ‘si mesmo’ lá dentro; se limitam a permanecer “encapsulados” no vazio que percebem dentro de si...Quem é roubado na oportunidade de desenvolver a intralocução (locução consigo mesmo), não tem como desenvolver posteriormente a interlocução com o Outro e com o Mundo!...Autoritarismo/Tirania em abundância ao redor, e ausência de AUTORidade (de Autor). Resultado: um contingente assustador de gente que não saberia narrar/escrever o texto de sua própria vida, porque não se percebe como um ser que É uma vida (singular e autônoma)... Em 1928 Walter Benjamim desenvolve textos sobre brinquedos e livros infanto-juvenis.Ele lembra que os chocalhos dados aos bebês universalmente são um registro da nossa ‘memória xamânica’, que registram a ânsia de ‘espantar os maus espíritos’Eu acrescentaria que ele se refere aos ‘maus espíritos’ dos primeiros ‘diabos no corpo’ das primeiras angústias diante das primeiras dualidades que inevitavelmente começam a nos assediar quando ainda somos ‘tão verdinhos’...Visionariamente ele aponta riscos no modo em que brinquedos e primeiros livros são apresentados às crianças; segundo ele:- Crianças são apenas pequenas e precárias, mas não são “bobas” ou “incapazes”;- Logo não há porque aliená-las das imagens (em seus brinquedos e livros) dos afazeres que ocupam o ser humano (as diversas faces do trabalho humano, por exemplo) e/ou do Pensamento singular e autonomo sobre essas coisas;- Por outro lado não há porque invadí-las com excesso de normas de suposto “dever de ser correto” nas orientações tanto lúdicas quanto didáticas; para que a singularidade tenha espaço de expressão e desenvolvimento autônomo é absolutamente fundamental que o ser em desenvolvimento tenha espaço interno para “a humanidade do errar”; (W. Benjamim apenas não usa ainda a expressão que nos é tão familiar, “politicamente correto”, mas é o que ele descreve com perfeição).Acrescento uma coisa que lembro com frequência no consultório (e fora dele): Vacina contra sentimentos humanos não existe, e jamais será inventada; logo, tanto o amor quanto o ódio, tanto a solidariedade quanto o ciúme, tanto a gratidão quanto a inveja (etc) vão nos caracterizar como humanos e ajudar a nos diferenciar de robôs: somos ‘pecáveis’ por natureza; impecabilidade é coisa para os robôs (e – segundo Isaak Asimov – nem para eles...).Ele descreve também estruturas do BRINCAR/JOGAR:- Gato e rato (como quando se brinca “de pegar”);- A Mãe que defende o Ninho (como o goleiro no futebol);- Animais que lutam por comida ou território (como no “pique-bandeira” ou no futebol americano).Em 1940 Wittgenstein acrescenta uma importante estrutura:- Os jogos de autodesafio (como um menino que bate bola sozinho numa parede; acrescento as meninas que brincam de pular corda sozinhas, ali ocupadas apenas com revesamento – e não com ‘vencedoras’ – mesmo quando pulam em grupo).Já em seu texto “O Narrador” de 1936, Walter Benjamim nos leva ainda mais longe em nossas reflexões. Descreve (nostalgicamente?) um Tempo em que havia tempo para as pessoas narrarem histórias umas para as outras.Algumas se ocupavam prioritariamente do ESPAÇO: eram os VIAJANTES.Outras se ocupavam prioritariamente do próprio TEMPO: eram os AGRICULTORES e os ARTESÃOS.Aí vieram os tempos do coorporativismo que deflagravam novas Instituições; os Narradores ainda sobreviveram por um período, e até se sofisticaram, pois as histórias dos dois grupos iniciais aprenderam a dialogar, gerando novas narrativas. Mais uma vez o DI / DIalogar: onde dois Pensamentos tentam se compreender, se complementar.Com a sofisticação das publicações, o tempo para narrar ficou cada vez mais restrito aos que tinham poderes para fazê-lo, e a voz foi para o livro.Faltava uma outra narração: a NARRAÇÃO ‘PARA DENTRO’, que Benjamim associa antes ao romance que aos contos, caracterizada por uma solitude, não necessariamente ‘encapsulada’.Voltando ao que falamos no início da palestra, quando alertamos para o fenômeno de que o brincar (na infância) e o aventurar-se (na adolescência) servem como uma espécie de ‘RITUAL ELABORATIVO’ para a construção da nossa relação com nosso ‘si mesmo’, com o Outro e com o Mundo, acabamos por chegar à inevitavel pergunta:ELABORAR (digerir, absorver, compreender)...elaborar O QUÊ?...Se lembrarmos uma característica de certas repetições, encontraremos um fio de meada bastante interessante.Há alguns anos atrás (poucos!) contávamos (por exemplo) com algum adulto que ‘nos contava histórias’; como (felizmente) isso ainda acontece hoje em dia, sabemos que a tendência da criança é pedir para quem lhe contou uma história: - “Conta outra vez!...” E o pedido e a ‘vez’ se repetem; e mais uma, e mais uma, e mais muitas...Hoje vemos também um imenso contingente infanto-juvenil que vê os mesmos filmes inúmeras vezes, ou joga o mesmo ‘game’ inúmeras vezes em algum aparelho multimídia, etc....: isto é, contam a mesma história para eles mesmos muitas e muitas vezes.O próprio Walter Benjamim acrescenta que a sexualidade humana pode representar o mesmo papel na vida do adulto: crianças, adolescentes e adultos TENTANDO PASSAR COISAS DA VIDA ‘A LIMPO’, OU NA ESPERANÇA QUE NA ‘VEZ’ SEGUINTE A COISA VAI SAIR MELHOR, OU TRAZER A MESMA EMOÇÃO DA PRIMEIRA VEZ COM O MESMO ‘FRESCOR’, OU ALGUMA NOVA E PRECIOSA INFORMAÇÃO IGUALMENTE EMOCIONANTE, OU AINDA ALGUMA ESPÉCIE DE ALÍVIO...Na verdade há uma coisa que precisamos aprender (e desenvolver confiança nela) em prol da sobrevivência de nossas interioridades: NOSSA CAPACIDADE DE REPARAÇÃO.É a aprendizagem de que - como somos humanos - somos precários SIM, transitórios SIM, expostos a errar (“pecáveis” e não “impecáveis”), mas que PODEMOS errar (temos o direito de errar), pois somos TAMBÉM CAPAZES DE REPARAR.Contido NESSE PROCESSO ESTÁ A APRENDIZAGEM DA ESPERANÇA.Por isso A CAPACIDADE DE REPARAÇÃO É CURATIVA...A aprendizagem de errar-reparar (e de alimentar a Esperança) é o ‘chocalho’ que se mantém necessário para enfrentarmos os ‘diabos’ das inevitáveis dualidades, e suportarmos – por exemplo – transitarmos entre as fantasias de Nirvana, as felicidades plausíveis do mundo (dito) real, e mesmo as infelicidades ou tragédias ...Seu exercício demanda TEMPO.Temos tempo?... Nossas crianças e nossos adolescentes ainda têm tempo (e liberdade) para esse precioso exercício?...Há uma espécie de ‘máxima’ no universo ‘PSI’ onde trabalho:“TEMPO É MEMÓRIA; MEMÓRIA É DESEJO; DESEJO É SUJEITO”.O Tempo pode gerar memórias singulares de experiências autônomas.Logo, nessa memória estão contidas ‘fotografias’ de expressões singulares dessas experiências autônomas.Logo, o conjunto dessas ‘fotografias’ exibe quem é o sujeito que vamos nos tornando e que deixa sua marca (única) no Mundo.Gostaria de comentar alguns pontos para finalizar.Não parece que vivemos tempos de valores per-vertidos (vertidos para fora do lugar ou da medida apropriada)?Por exemplo:- O SILÊNCIO parece valer mais que a FALA (quem nunca ouviu dizer que “A palavra é prata e o silêncio é ouro, por exemplo?); por que, se a FALA é a EMISSÁRIA DO DIÁLOGO, das RELAÇÕES DIALÓGICAS?- A CIRCUNSPCÇÃO e a PERÍCIA ESPECIALIZADA parecem valer mais que a CRIATIVIDADE e o HUMOR; por que, já que são apenas TALENTOS DIFERENCIADOS que podem ser buscados em PESSOAS DIVERSAS, e SOMADOS PRODUTIVAMENTE em EQUIPES INTERDISCIPLINARES, para BENEFÍCIO DE TODOS?Schiller acreditava na plausibilidade da “Educação Estética do Homem”; eu também.“...O homem estético(que é também o virtuoso) tem como imperativo aproximar dignidade e felicidade, dever e prazer no Belo ou, sendo genio, na obra de Arte...” diz Márcio Suzuki na introdução de uma edição brasileira da proposta de Schiller, que afirma (por exemplo) ele mesmo: “...A beleza teria de poder ser mostrada como uma condição necessária da humanidade”...Além do que chama de ‘impulso sensível” e de “impulso formal”, reivindica um espaço para o exercício de um ‘IMPULSO LÚDICO’ que ilumine a expansão de um ser humano ético E estético. Nossos tempos por um lado tão aparentemente venais, e simultanea (ou esquizoidemente) ‘sizudos’ prefere regras autoritárias, que são aplicadas tanto no universo da banalidade (por exemplo, as normas sobre “como as pessoas devem se vestir ‘adequadamente’ para ir a tal ou qual lugar”), quanto no universo dito ‘culto’ (como a recente tentativa patética de desqualificar a obra infanto-juvenil de Monteiro Lobato, onde seus detratores curiosamente parecem ter esquecido convenientemente de localizar historicamente a escrita da obra, da mesma forma que parecem ter convenientemente esquecido de ler o esclarecedor conto ‘A Vioeta Orgulhosa’, ou ainda convenientemente parecem ter esquecido de avaliar que toda uma geração que leu Lobato se revelou uma geração preocupada e ocupada com a defesa dos direitos civis/humanos, e não um grupo racista/fascista, se precipitando os detratores a tentar interferir na obra, no melhor estilo fundamentalista!).Dessa sizudez venal parece emergir uma Academia que tem frequentemente desmentido sua suposta função: uma Academia monstruosamente sem espaço para a renovação da “CAPACIDADE DE ESPANTO”, sua pedra fundamental, supostamente sua primeira aliada ou “bandeira”; uma Academia que parece esquecer de alimentar a singularidade, o senso crítico e a autonomia!...Na Academia os poderes da regra e da formalidade parecem andar superando a Potência da liberdade e da criatividade, além de – claro – ignorar a Luz crítica do Humor (essencial para formação de senso crítico singular e individual).Se até a Academia adota essa “cultura” (ou esse “pathos”), como criticar as demais instituições (Mercado e Governo)?...Os talentosos (e já queridos) Rosa e Bernardo também presentes pontuaram isso em muitas de suas falas aqui, e a acadêmica norte-americana Marjorie Garber faz uma leitura psicanalítica disso em seu elogiado livro “Instintos acadêmicos”, que recomendo.Pelo visto a UEMA e este encontro fogem – FELIZMENTE – a esse perigoso (fundamentalista/fascista/letal) padrão vigente, iluminando a Esperança.Para que essas reflexões?Porque em hebraico há apenas um vocábulo para VONTADE e SABOR.Porque o brinquedo é o trabalho da criança, enquanto que o trabalho pode ser o brinquedo do adulto.Quem sabe para que a Vida abra mais e mais janelas que recuperem a Luz da ‘Capacidade de Assombro’, que recuperem sua Vontade, que recuperem seu Sabor, que recuperem seu SENTIDO; enquanto há Tempo.“...SE NÃO TEM ONDE MORAR, MORA NA FILOSOFIA!...”OBRIGADA, ABRAÇOS A TODOS.Christina Montenegro, fevereiro de 2014.

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